segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Memórias Jamais Esquecidas

Com a implantação do regime republicano em Portugal a colonização de Angola entrou numa nova fase. Existia agora a crítica pelos monárquicos terem abandonado as colónias e havia a preocupação com a educação daqueles povos. O impacto da Segunda Guerra Mundial foi devastador, pois veio provocar uma reviravolta nas relações entre nações colonizadoras e povos dominados.

A situação das colónias africanas começou então a transformar-se e na década de 50, a questão da descolonização dessas colónias africanas emergiu no plano internacional e tornou-se uma questão incontornável, sendo nessa época publicado o primeiro manifesto do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). O desejo de libertação do povo africano começou assim a crescer cada vez mais e no princípio dos anos 60 existiam já três movimentos de libertação (UPA/FNLA, MPLA e UNITA) que iniciaram a luta armada contra o colonialismo português. Dá-se então o Ultramar, também conhecido como Guerra Colonial Portuguesa, e vulgarmente conhecia como Guerra de Libertação pelos africanos independentistas. (…) Esta guerra subsistiu entre 1961 e terminou em 1974/75 com o fim do Estado Novo, durante cerca de 13 anos Portugal encaminhou para as colónias africanas milhares de soldados.

(…) Pela parte portuguesa, a guerra sustentava-se pelo princípio político da defesa daquilo que se considerava território nacional, baseando-se ideologicamente num conceito de nação pluricontinental, para Salazar o Portugal deste tempo era um país uno e indivisível do Minho a Timor, e multi-racial. Pelo outro lado, o lado africano, os movimentos de libertação justificavam-se com base no princípio inalienável de auto-determinação e independência, num quadro internacional de apoio e incentivo à luta. Angola, com os ataques às prisões de Luanda e às fazendas portuguesas que marcaram o início da luta armada, foi das colónias mais afectadas e onde primeiramente os colonos se organizaram para tentarem obter a sua independência. António Francisco Narciso Leonor, que em 1968 tinha apresentado praça, tinha já a ideia que com o avanço da guerra era provável que fosse recrutado, sendo então enviado para Angola em 1969, para defender o território nacional com os seus 21 anos. (…) A partir 1969 a guerra agudizou-se, tudo se complicara, a guerra obtinha agora o auge. O soldado de transmissões que integrou a Companhia de Caçadores 2456 pensava apenas que tinha de se defender a si próprio e assim, por consequência, defender os companheiros de guerra e a população que vivia lado a lado com ele. O soldado Leonor que esteve inicialmente por Luanda, passou também por Muié, Chitembo e terminou no Lobito. Recorda o Muié como a pior zona por onde passou, “uma autêntica zona de guerra”, e onde nada havia, apenas miséria, no entanto o Lobito já era como uma zona de férias. (…) As fracas condições de vida daquela população eram notáveis, bem como a ingenuidade feminina. Estas não eram só abusadas pelos soldados, mas também pelo homem negro, eram cerca de quatro mulheres para cada homem, limitando-se a dar-lhes ordens sem que nada lhe ocupasse tempo. Era já um hábito. Apesar disso, a relação com a população em geral era boa, pois tinham de conviver habitualmente com eles. Eram alimentados a peixe seco, e com a farinha faziam um tipo de massada que comiam com alguns bichos, não havia qualquer tipo de defesas. Por outro lado, a relação com os guerrilheiros, aos quais chamavam turras, era de ódio, e era esse ódio que sustinha a guerra e originava cada passo que ali se dava. Não tinham qualquer receio de ir à luta, nem podiam ter, era “matar para sobreviver” se não matassem, eram mortos. Havia mesmo quem dissesse que “matar um turra era como ir à caça e matar um coelho”. (…) O mais imprevisível que tinham eram as minas escondidas nos caminhos por onde os carros passavam. Estas rebentavam de acordo com o que os turras queriam, “podiam rebentar (…) só no quarto carro, era como eles decidiam”, muitos foram atingidos, companheiros do soldado António chegaram mesmo a perder determinados membros do corpo e ainda assim conseguiram sobreviver. Existia dentro destes soldados uma força desumana que os fazia vencer em vez de serem vencidos. Quando ao longe, já avistavam as lareiras acesas era porque alguém tinha informado os turras. Naqueles locais considerados de grande perigo mandava-se a aviação bombardear e só depois é que eles agiam. Por vezes a população vinha entregar-se com fome, alem das poucas condições que tinham tudo o que era semeado era destruído pelas corporações. Algumas vezes os turras descobriam e quando assim era, seguiam a população, apanhavam-nos e tratavam-nos muito mal, acabando por servir muitas vezes de isco para conduzirem os soldados até emboscadas.

António Leonor, agora com 62 anos, recorda com algum riso que as torturas que ali passou foram proporcionadas pelo facto de andar sempre carregado com o transmissor, a bateria, armas, carregador e tudo mais, e que isso era o que mais lhe custava, caminhar horas a fio com todo aquele peso. Já com alguma seriedade, revela que as torturas que sofreu foram mais no campo psicológico, nunca foi capturado, mas viu companheiros a serem mortos. No entanto o pior momento do soldado da Companhia de caçadores 2456 foi uma emboscada que ele e os seus companheiros sofreram e que tiveram vários mortos, “foi horroroso! (…) toda a gente chorava”. Enganados por um guia que em vez de os conduzir até ao local desejado acabou por os levar para um local distinto, a raiva mobilizou-os, acabando o guia por ser interrogado e mais tarde morto. O choque para a companhia foi enorme, deixando de comer durante alguns dias devido aos nervos que tinham acumulado. (…) Quanto aos guerrilheiros eram capturados e iam já algemados para o acampamento, para depois se prenderem a ferros, serem interrogados e torturados caso não colaborassem com os portugueses. Os que eram alimentados era a arroz salgado e sem qualquer tipo de bebida. O soldado de transmissões conta ainda uma operação em que apanharam turras que vinham pelo lado da Zâmbia e tinham consigo documentos que mostravam pertencer ao Movimento Popular de Libertação de Angola, acabando por serem mortos à punhalada. Mais uma vez, o ódio fê-los mover. Passados escassos meses da sua permanência por Angola, António Leonor, tornara-se um selvagem, como todos os companheiros. A linguagem tornara-se grosseira e rude. Viu balas a passarem-lhe rente à sua cabeça, pensou por momentos que podia ter morrido, ainda que nunca tivesse pensado nisso quando foi para Angola, pois nunca quis pensar que podia não voltar mais a casa

Alguns dos acidentes de guerra entre soldados foram causados pela situação de guerra em que se encontravam. (…) A maior alegria que os soldados tinham era quando avistavam o avião, sabiam que era o correio e gritavam “Aviãooo…” enquanto corriam em direcção ao acampamento na ânsia que algo lhes fosse entregue, um sinal de saudade e de carinho, no entanto também “era triste, muito triste, quando não se recebia nada…”. Antes de regressar a Lisboa, o soldado António Leonor, esteve cinco meses no Lobito, era para ali que os enviavam antes de regressar à Metrópole para que readquirissem o lado civilizacional. (…) António nunca esquecerá aqueles anos em Angola, nem de alguns rituais que a população tinha, “era gente diferente”. Os dois anos passados em África mostraram a António Francisco Narciso Leonor um mundo diferente que o fazia ter de estar preparado para todo o tipo de incidentes.

Contudo, António agora entende que deu a sua vida por uma colónia, por um pouco mais da Nação portuguesa, ao contrário do que pensava na altura.

Hoje, décadas depois os negros continuam a olhar para nós, portugueses, com desconfiança e como um povo invasor, sendo difícil mater uma certa relação com as colónias de outrora

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